top of page

A coisa julgada secundum eventum probationis

  • Aline Lemos
  • 30 de mai. de 2023
  • 8 min de leitura

A coisa julgada é o instituto jurídico, pertinente ao direito processual, pelo qual se torna imutável a sentença. Assim define Humberto Theodoro Júnior:

"A res iudicata, por sua vez, apresenta-se como uma qualidade da sentença, assumida em determinado momento processual. Não é efeito da sentença, mas a qualidade dela representada pela “imutabilidade” do julgado e de seus efeitos, depois que não seja mais possível impugná--los por meio de recurso".

É a partir da coisa julgada que se torna imutável a sentença não mais sujeita a recurso ou reexame necessário. Isto é, prolatada a sentença, após a interposição e decisão dos recursos cabíveis ou mesmo após a decorrência do prazo sem a interposição destes, há o trânsito em julgado da sentença, ocorrendo assim a coisa julgada, que torna definitiva a decisão.

Destarte, é mediante essa imutabilidade determinada pela coisa julgada que é possível estabelecer segurança jurídica, uma vez que se dá fim a infinitas discussões jurídicas acerca de uma mesma situação.

No ordenamento jurídico brasileiro, ratificando-se a importância do instituto ora estudado, há a previsão da coisa julgada não apenas na legislação infraconstitucional, mas também na carta magna brasileira. Em seu artigo 5º, inciso XXXVI, a Constituição Federal Brasileira estabelece que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”4, concretizando o princípio da segurança jurídica no sistema normativo brasileiro. No tocante ao tema, Junior e Nery lecionam que “a segurança jurídica trazida pela coisa julgada, é manifestação do estado democrático de direito”5, exprimindo a relevância do instituto da coisa julgada para a manutenção do estado democrático de direito.

Outrossim, a coisa julgada resta também assegurada pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e pelo Código de Processo Civil Brasileiro. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu artigo 6º, §3º, conceitua a coisa julgada como “a decisão judicial de que já não caiba recurso”6. Nesse segmento, o Código de Processo Civil também prevê, em seu artigo 502, que “denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”. Acerca dessa conceituação dada à coisa julgada, esclarece Fredie Didier Jr.:

Primeiramente, considera a coisa julgada uma "autoridade". "Autoridade" é uma situação jurídica: a força que qualifica uma decisão como obrigatória e definitiva. Como situação jurídica, a coisa julgada é um efeito jurídico - efeito que decorre de determinado fato jurídico, após a incidência da norma jurídica. Na segunda parte, o art. 502 do CPC preceitua os dois corolários dessa autoridade: a decisão torna-se indiscutível e imutável. A indiscutibilidade da decisão projeta-se, também, para fora do processo em que proferida - também, porque, sendo admitida a coisa julgada parcial, examinada mais à frente, é possível que, de um mesmo processo, surja mais de uma coisa julgada.|

Assim sendo, não restam dúvidas de que a coisa julgada consiste num instrumento de efetivação da segurança jurídica através da imutabilidade e indiscutibilidade das decisões de mérito e de seus efeitos. No entanto, o fato da coisa julgada poder limitar-se dentro do processo e projetar-se para fora dele, conforme supracitado, faz com que a doutrina a divida em duas classificações, coisa julgada formal e coisa julgada material, situação sobre a qual Marinoni, Arenhart e Mitidiero, em suas lições, deliberam:

Quando se pensa nessa indiscutibilidade da sentença de mérito, logo surge a seguinte questão: indiscutibilidade interna ou externa ao processo em que a sentença foi prolatada? Como foi visto anteriormente, as decisões judiciais podem ser objeto de revisão dentro do próprio processo do qual emanam por meio dos recursos. Em tese, também podem ser revistas excepcionalmente fora do processo – por exemplo, por meio de ação rescisória (arts. 966 e ss.)

Isto posto, cumpre esclarecer que a coisa julgada formal, como já referido, ocupa-se da indiscutibilidade interna ao processo. Melhor dizendo, a coisa julgada formal se dá pela impossibilidade de o julgador reapreciar uma situação já decidida dentro do mesmo processo.

Por fim, cabe ainda referir que a coisa julgada possui três diferentes tipos de formação, são elas pro et contra, considerada a regra geral uma vez que independente do resultado do processo a decisão é capaz de produzir coisa julgada, secundum eventum litis, sob qual a decisão apenas produz coisa julgada em um dos resultados do processo, ou procedência ou improcedência, e secudum eventum probationis – a qual, aplicada aos processos previdenciários de concessão e restabelecimento de benefício por incapacidade, é o objeto de estudo do presente artigo – que, conforme a própria denominação explica, apenas forma coisa julgada se decidida com base na suficiência da instrução probatória.

Em razão disso, esclarece-se que a coisa julgada secundum eventum probationis nada mais é do que a coisa julgada que apenas se forma mediante o esgotamento das provas. Assim define Didier:

“(...) há a coisa julgada secundum eventum probationis, que é aquela que só se forma em caso de esgotamento das provas – ou seja, se a demanda for julgada procedente, que é sempre com esgotamento de prova, ou improcedente, com suficiência de provas. Se a decisão proferida no processo julgar a demanda improcedente por insuficiência de provas, não formará coisa julgada.”13

No entanto, em que pese a importância da necessidade de exaurimento das provas para o julgamento da lide – principalmente a previdenciária – importa salientar que a coisa julgada secundum eventum probationis, na legislação processual civil brasileira, tem previsão de aplicação apenas em demandas que versem sobre direitos difusos e coletivos. Nesse sentido, Neves esclarece:

Enquanto, no instituto tradicional, a imutabilidade e a indiscutibilidade geradas pela coisa julgada não depende do fundamento da decisão, nos direitos difusos e coletivos, caso tenha a sentença como fundamento a ausência ou a insuficiência de provas, não se impedirá a propositura de novo processo com os mesmos elementos da ação - partes, causa de pedir e pedido -, de modo a possibilitar uma nova decisão, o que, naturalmente, afastará, ainda que de forma condicional, os efeitos de imutabilidade e indiscutibilidade da primeira decisão transitada em julgado.

Por outro lado, embora não se tenha previsão legal para a aplicação da coisa julgada secundum eventum probationis nas ações que não versem sobre direitos coletivos, cabe referir que tal ideia não se trata de uma anomalia jurídica, vez que o próprio Superior Tribunal Federal, no julgamento do RE 363.889, admitiu a reanálise de demanda de investigação de paternidade que anteriormente havia sido rejeitada por insuficiência de provas16, não sendo este o único julgado acerca do tema. Ademais, em que pese a garantia à segurança jurídica proporcionada pela coisa julgada, a proteção a essa garantia constitucional não pode desconsiderar os demais valores e princípios trazidos pela Carta Magna.

Sendo assim, pelo relevante valor social que possui a seguridade social, é que o processo previdenciário – tanto administrativo, quanto judicial – necessita ser pautado na justiça e eficiência a fim de garantir os direitos fundamentais sociais à sociedade. Nesse sentido, Leite e Santos ponderam:

Destarte, tendo em vista que a Constituição Federal intitulou o Estado como responsável pela garantia da concretude dos direitos fundamentais sociais, é necessário que o processo seja conduzido por técnicas processuais visando dar efetividade aos direitos fundamentais sociais de forma a concretizar os fins almejados pelo Estado.

No entanto, uma vez que o Estado, por diversas situações – principalmente – econômicas, presta atendimento precário à população quanto a Previdência Social, cada vez mais tem se tornado comum o ingresso de ações judiciais em face da autarquia responsável pela seguridade social, qual seja o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, a fim de serem assegurados os direitos fundamentais sociais previstos constitucionalmente. Destarte, os processos previdenciários se dão como instrumentos de justiça.

Importa salientar que as ações previdenciárias tramitam com base no Código de Processo Civil, mas também com base na legislação especial. Inclusive, em seu artigo 55, §3º, a Lei que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências (Lei 8.213/91), prevê que o tempo de contribuição dos segurados deve ser comprovado mediante a apresentação de prova material, sendo a prova exclusivamente testemunhal inadmissível para a concessão do benefício. Assim vejamos:

Art. 55. O tempo de serviço será comprovado na forma estabelecida no Regulamento, compreendendo, além do correspondente às atividades de qualquer das categorias de segurados de que trata o art. 11 desta Lei, mesmo que anterior à perda da qualidade de segurado: (...) § 3º A comprovação do tempo de serviço para os fins desta Lei, inclusive mediante justificativa administrativa ou judicial, observado o disposto no art. 108 desta Lei, só produzirá efeito quando for baseada em início de prova material contemporânea dos fatos, não admitida a prova exclusivamente testemunhal, exceto na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito, na forma prevista no regulamento.

Além do mais, são ações que demandam grande instrução probatória. No entanto, em que pese sejam ações que necessitam de provas substanciais à análise do julgador, são também ações que requerem provas de difícil acesso. A título de exemplo, nas ações de concessão de aposentadoria rural existe o obstáculo temporal para arrecadação de prova documental. Nesse mesmo segmento, pode-se exemplificar a dificuldade de junção de provas também documentais nas ações de concessão e restabelecimento de benefício por incapacidade quando o autor depende unicamente do Sistema Único de Saúde para ter acesso à documentação médica suficiente a provar sua patologia.

Portanto, acerca da possibilidade de aplicação da coisa julgada segundo evento probatório nas ações previdenciárias, verifica-se da análise da decisão que a conclusão do Ministro se deu apenas no âmbito do CPC, uma vez que, segundo ele, houve a ausência de conteúdo probatório válido a instruir a inicial, implicando na carência de pressuposto de constituição e desenvolvimento válido do processo.

No entanto, vale ressaltar que tal entendimento vai de encontro ao entendimento doutrinário que lecionam os autores Savaris, Schuster e Vaz:

Mas, se o juiz se lança à tarefa de valoração da prova, não estaria ele examinando o mérito para, depois então concluir pela ausência ou insuficiência de prova, extinguir o feito sem julgamento do mérito? É um tanto quanto rigoroso afirmar, na linha do precedente firmado que “o princípio de prova material é pré-condição para a própria admissibilidade da lide” ou que se trata de documento essencial, que deve instruir a petição inicial, pena de indeferimento. Ao analisar a insuficiência de prova material, impõe-se a extinção do processo com julgamento do mérito.

Assim, do presente estudo é possível concluir que a coisa julgada visa a garantia constitucional de segurança jurídica, bem como que o ordenamento jurídico brasileiro não prevê a aplicação da coisa julgada secundum eventum probationis em demandas que não versem acerca de direitos difusos e coletivos. Sendo assim, não se aplica à demandas previdenciárias.


Karoline Silva da Paz, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFGRS.

_______

Referências:

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 13.105 de 16 de março de 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 18 mar. 2022.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 09 mar. 2022.

BRASIL. Lei de introdução às normas do direito brasileiro. Decreto-lei 4.657 de 04 de setembro de 1942. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del4657.htm. Acesso em: 18 mar. 2022. CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de direito previdenciário – 25. Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2022.
BRASIL. Lei N° 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em: 23 mar. 2022.
DIDIER JUNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria. Curso de direito processual civil: teoria da prova, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela – 10 ed. – Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015. HUMBERTO, Theodoro Júnior. Curso de direito processual civi l, volume 1. 62 ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2021.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum, volume II. 2 – ed. ver., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de processo civil comentado. 16. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume único. 10. ed. Salvador: Ed. Juspodivm, 2018.

SAVARIS, José Antônio; SCHUSTER, Diego Henrique; VAZ, Paulo Afonso. A garantia da coisa julgada no processo previdenciário para além dos paradigmas que limitam a proteção social. Curitiba: Alterida de, 2019.

ree

 
 
 

Comentários


  • Whatsapp
  • Instagram
  • Facebook
  • Youtube
bottom of page